Introdução
História
Quando Agostinho Manduca Mateus Ika Muru Inu Bake visitou os Ashaninka do rio Amônia, em 1988, ainda não era o emblemático pajé que norteia mesmo depois de sua morte as ações de abertura cultural dos Huni Kuin. Havia percorrido grande parte das terras do Acre fronteiriças ao Peru empenhado na demarcação do território de seu povo e participado ativamente das lutas para libertação do modelo extrativista da seringa que favorecia o enriquecimento de patrões e proibia atividades culturais indígenas.
A trajetória de Agostinho lhe valeu experiência para firmar-se visionário. Os Huni Kuin, gente verdadeira, como se autodenominam, eram mais conhecidos como Kaxinawa, povo morcego, forma pela qual outros povos os chamavam, mas que adotaram como própria por longo período até alcançarem a paz necessária para reativarem sua cultura tradicional.
A história Huni Kuin é dividida em cinco tempos: o das malocas, em que viviam nus antes do contato com os brancos, o tempo da correria, sobrepujados pelas armas de fogo e dominação do território quando foram reduzidos a pouco mais de 300 pessoas, o tempo do cativeiro, reféns dos seringalistas que implementaram o sistema escravagista dos barracões, sob o qual nasceram Agostinho e todos Huni Kuin hoje mais velhos.
O tempo dos direitos, a partir da década de setenta, contou com as formulações dos antropólogos Terri de Aquino e Marcelo Piedrafita na constituição das cooperativas e na delimitação dos territórios. Hoje vivem o xina bena, novo tempo, que alia a transmissão das tradições entre velhos e jovens a intercâmbios com o mundo do século XXI.
A cultura é nossa maior proteção foi o ensinamento recebido por Agostinho na aldeia Ashaninka durante um ritual de ayahuasca, medicina de uso tradicional de muitos povos nativos ameríndios, entre eles os Huni Kuin. A cultura fortalecida expande fronteiras, forja um novo estado de espírito pulsante, epicêntrico, mais potente que a desgastante resistência sempre contaminada pelo opressor. A partir desse momento mergulhou por mais de vinte anos no estudo da ancestralidade, buscou cantos, mitos, conhecimentos de plantas, tratamentos e a própria cosmovisão. Junto a outros pajés, elaborou um projeto chamado de “Una Hiwea – Livro Vivo” que previa a construção coletiva de um livro para criar a oportunidade da troca de saberes. O encontro e o propósito comum ativaria o trabalho nos parques e consequentemente o uso da própria medicina em benefício do povo. O livro torna-se, assim, uma nova ferramenta de atualização da tradição oral. Ele é vivo pois não deixa o conhecimento morrer, mais do que isso o ramifica, enlaça novos sentidos, cria raízes e dissemina sementes.
Do Rio de Janeiro eu não imaginava a existência de um projeto editorial tão original e relevante no meio da Amazônia acreana. Há mais de vinte anos tenho uma editora voltada para edições ligadas a memória, pesquisas, processos colaborativos e, especialmente desde 2009, ao conhecimento da natureza.
Projetos sobre naturalistas do século XVIII no Brasil, jardins sinuosos do século XIX e o paisagismo de Burle Marx trilharam o caminho que me conduziram em 2011 às aldeias Huni Kuin pela primeira vez à convite do Jardim Botânico do Rio Janeiro.
Em setembro de 2011 fomos ao encontro do pajé Agostinho em sua aldeia. Chegamos a noite depois de dois dias de viagem. Fomos em pequena equipe formada por mim, Alexandre Quinet, taxonomista do Jardim Botânico e por Carlos, um rapaz do Juruá que ficaria na aldeia por três meses para ajudar a construir a maloca em que se realizaria a oficina no mês de dezembro que reuniria todos os pajés das aldeias dos rios Jordão e Tarauacá. Durante este encontro Agostinho viu que faríamos o que ele chamou de livro-mãe e que poderíamos abrir as imagens e conhecimentos sobre as plantas.
Na oficina em dezembro foram registradas e coletadas a maior parte das informações para o livro, além de definido seu título: Una Isi Kayawa. O pajé Agostinho, que nos orientou para que a edição se tornasse um documento de proteção e de estudo de seu povo, faleceu poucos dias após o evento, elevando todo o projeto a uma categoria de muito mais responsabilidade.
”Una Isi Kayawa – Livro da cura” tornou-se um livro pioneiro que reúne conhecimento tradicional e ciência através do profundo conhecimento das plantas e das práticas medicinais do povo Huni Kuin. Sua concepção e idealização fazem parte de um longo processo de pesquisa, encontros, conversas, cerimônias e relatos. Um projeto tão desafiador quanto gratificante, que envolveu dois anos e meio de trabalho ininterrupto: cinco viagens ao Rio Jordão e quatro residências de tradutores indígenas no Rio de Janeiro.
O livro foi cercado de cuidados, tanto na pesquisa quanto na produção. Um exemplo é a fonte hunikuin, criada durante a oficina especialmente para o projeto, a partir das letras manuscritas dos cadernos de pesquisas dos pajés e aprendizes.
A primeira tiragem de mil exemplares foi produzida em papel plástico de garrafas pet para sobreviver à umidade da floresta. Em maio de 2014 esses exemplares foram distribuídos entre pajés e aprendizes do rio Jordão, em uma grande festa, e também para lideranças e pajés das 32 aldeias da região ao longo do rio. A partir de uma votação entre os Huni Kuin, foi decidido que o livro poderia ser distribuído também fora da aldeia indígena. O lançamento foi no Parque Lage no Rio de Janeiro, onde construímos uma maloca tradicional, que até hoje acolhe eventos indígenas e de outras naturezas afins. O evento de lançamento contou com a presença de uma comitiva de quinze pajés. Foram realizados também lançamentos em diversas capitais brasileiras e o livro ganhou o prêmio Jabuti de Ciência da Natureza em 2015.
”Una Isi Kayawa – Livro da cura” foi também ponte que levou o artista plástico Ernesto Neto ao contato com os Huni Kuin. Ele aceitou nosso convite para uma viagem de revisão do primeiro protótipo da edição. Percorremos diversas aldeias para apresentar o livro e confirmar as informações junto a seus autores indígenas. Desde então Neto realizou exposições em parceria com os Huni Kuin em diversos museus de arte contemporânea no mundo: Guggenheim Bilbao, Austria, Alemanha, Dinamarca, Finlândia… uma parceria que trabalha em favor do encontro do conhecimento tradicional com a cultura ocidental.
Em 2014 na intenção da continuidade do projeto, entregamos com o apoio do Rumos Itaú Cultura, cadernos para os pajés de todas as aldeias dos rios Jordão e Tarauacá. A ideia inicial era que servissem de base para um novo livro com o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, no entanto, quando devolvidos para registro, os cadernos revelaram a potência do trabalho de pesquisa realizado pelos próprios pajés. Instruídos pelo pajé Dua Buse, que rebatizou o projeto como Una Shubu Hiwea – Livro Escola Viva trabalhamos integralmente a partir da pesquisa Huni Kuin, colaborando para a realização de um livro de 400 páginas impresso em papel pet (para sobreviver a umidade da floresta), um filme e uma grande exposição no Itaú Cultural, além de uma escola viva construída na aldeia do pajé Dua Buse para favorecer encontros de aprendizagem.
Cada caderno revela uma linha de criação e editorial própria. Além de servir como relatório do trabalho, de registro e representação do seu conhecimento, os cadernos motivam o uso de tratamentos tradicionais de cura e a organização dos parques de medicina, onde de fato o Livro Escola Viva é escrito.
Entre 2015 e 2017 preparamos em parceria com o Itaú Cultural a exposição UNA SHUBU HIWEA com filmes, construção de escola na aldeia de Dua Buse e outras iniciativas importantes.
Una Shubu Hiwea abarca uma série de atividades como Casa de Essências, fortalecimento da autonomia das mulheres, conservação de desenhos, cadernos e pinturas, encontros para trocas, viagens de intercâmbio, apoio a criação de material didático próprio nas escolas das aldeias e pesquisas para novos livros.
Buscamos apoios e parcerias para esse projeto único, que se realiza passo a passo contando com permissões em todas as esferas.
O conjunto de todas essas ações, e o interesse mundial que tem provocado, confirmam a visão do pajé Agostinho que, diante de um mundo abalado por ações destrutivas humanas, devemos trabalhar em aliança com o reino vegetal, responsável pela vida no planeta do ar ao alimento. Aí está nossa cura e proteção. (Anna Dantes).
Autoria:
Agostinho Manduca Mateus Ika Muru in memorian, Manuel Vandique Dua Buse Kaxinawa, Maria Tereza Kaxinawa, Dani Mateus, Lauro Sales Yasã, Sávio Barbosa Txana Kisti, Ademar Domingos Rodrigues Shane Huni, Ozelia Sales, Edinaldo Macário Maná, Eliberto Sena Tene, Txana Bane, Siã Huni Kuin, Leopardo Sales, Fernando Barbosa Siã, Francisco Célio Keã, Francisco Chagas Yube, Francisco Chagas Maia Nixiwaka, Antonieta Mateus Batani Huni Kuin, Bunke Huni Kuin, Francisco de Assis Buretami Dua Busã, Francisco Arnaldo Macário Keã, Francisco Sabino Buretama Macari, Francisco Sena Kaxinawá Isamema, Gilberto Marcelino Keã, Gilmar Sereno Sales Txana Kupi, Rita Pinheiro Sales Kaxinawá, Edilene Pinheiro Sales Kaxinawá, Jociclei Pinheiro Sales, Ibã Isais Sales, Irã Pinheiro Sales Yawa Bane, José Domingos Itsairu, José Mateus Itsairu, José Melo Macário Bane, José Paulino Sales Txana Ika Kuru, Josenildo Sales Siã, Lusivaldo Alfredo Melo Maná, Manuel Dua Busã, Aldo Sena da Silva Shaemetü, Antonio Maia Kaxinawá Shaemetü, José Maia Kaxinawá Yube, Maná Dua Bake, Mardilson Sales, Miguel Sales Siã, Norberto Sales Tenë, Antonio Kaxinawá Txana Makari, Bari Bai, Célio B. da Silva Kaxinawa, Ibã Huni Kuin Dua Bake, Isailson, José Antônio Domingos, Lex Forker Uri, Mana, Paetani Huni Kuï, Txana Masheini Maria Aparecida Sales, Txana Runy, Yawarika Huni Kuï e Zerzulino Makario, Osmar Keã, Raimundo Abdias Kupi, Ronaldo Damião Keã, Tiago Sales Ibã, Toni Sales Txanu, Menegildo Paulino Kaxinawá, José Mateus Itsairu, Isaka Oswaldo Mateus, Tadeu Mateus Huni Kui Sia Txana Hui Bai, Ayani Huni Kuin entre mais 3000 participantes não menos importantes que partilham da Escola Viva Huni Kuin.
Colaboração:
Anna Dantes (ativação de projetos e edição), Alexandre Quinet (organização botânica), Pedro Luz (etnobotânica), Camilla Coutinho, (fotografia e vídeos), Taua Klonowski (vídeo, drone e fotografia), Gabriel Takashi e João Manuel Tui (assistentes de Design), Ana Carolina Trebisch (produção), Yan Saldanha (registros de áudio e paisagem sonora), Juliana Nabuco, Rafael Ibã (Casa de Essências), Mariana Carvalho Dani, Camila Vaz e Isabelle Passos(cartilhas Shubu Hiwea), Luiza Brettas (produção da oficina Mibã), Ernesto Neto (co-curadoria exposição Una Shubu Hiwea, Carlos Alberto Saraiva (construção kupixawa da oficina Mibã), Nara Luz e Gabriel Rosa (fotografia e vídeos), Ananda Bevilaqua (assistente de etnobotânica), Juliana Wähner (assistente de design).
Parcerias:
Una Isi Kayawa, Livro da Cura com Jardim Botânico do Rio de Janeiro
Una Shubu Hiwea, Livro Escola Viva com Itaú Cultural
Agradecimentos:
Bia Saldanha, Marcelo Piedrafita, Guardiões Huni Kuin, Txai, Fephac, Ernesto Neto, Conservação Internacional, Fabio Scarano, Pancrom, Marcelo Gazzola e Digo Fiães
Una Shubu Hiwea é um projeto colaborativo que envolve mais de 3000 pessoas. Sua realização conta com equipes de trabalho que envolvem grupos especiais a cada etapa. Caso exista algum crédito incorreto ou esquecido, pedimos desculpas e solicitamos que entre em contato para sua revisão.